quarta-feira, 31 de março de 2010

Sensacionismo e Futurismo na «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos

    Durante a Semana da Escola, o professor José Luís Santos dinamizou uma interessante palestra onde abordou um dos poemas mais importantes de um  heterónimo de Fernando Pessoa:Álvaro de Campos e a  sua Ode Triunfal.












Sensacionismo e Futurismo na «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos
Neste dia, estamos todos convocados para um grande desafio: partir à descoberta das facetas essenciais de um dos poemas mais importantes da autoria do heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, intitulado: Ode Triunfal.

Antes de mais, é fundamental salientar que na carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, sobre o nascimento dos heterónimos, este foi o poema inaugural escrito por Álvaro de Campos e está ligado à génese deste heterónimo, pouco tempo depois daquele “dia triunfal” da vida de Fernando Pessoa, ocorrido a 8 de Março de 1914; isto a fazer fé no relato da referida carta enviada a um dos directores da revista «Presença».

A esse propósito escutemos o testemunho epistolar de Fernando Pessoa: “Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos, a ode com esse nome e o homem com o nome que tem.”

Além deste papel primordial no desabrochar da lírica de Álvaro de Campos, este poema revela também a sua importância pelas reacções díspares e antagónicas que gerou: primeiro num círculo muito restrito de amigos, no ano de 1914; depois já em 1915, aquando da publicação da Ode Triunfal no primeiro número da revista Orpheu.

De facto, entre o grupo de intelectuais que se reuniam nalguns dos cafés mais emblemáticos da Baixa lisboeta entre 1913 e 1915, o apoio era franco.

Às vezes, em tom burlesco como foi o caso de Almada Negreiros quando Fernando Pessoa, a meados de 1914, lhe fez chegar uma cópia da Ode Triunfal, no café Irmãos Unidos, dizendo que aquele texto poético lhe fora enviado por um escritor ainda desconhecido do grande público e das tertúlias literárias da época, em vez de assumir claramente que se tratava do poema inaugural do seu recém-criado heterónimo Álvaro de Campos.

Vale a pena prestarmos a devida atenção ao relato de Almada Negreiros sobre este episódio do modo como leu a Ode Triunfal e, em seguida, como ele reagiu: “Fernando Pessoa deu-me a ler a Ode Triunfal. Aos primeiros versos saltei acima da mesa até ao último verso. Desci e disse ao Fernando Pessoa: Álvaro de Campos, peço-lhe encarecidamente quando encontrar o Fernando Pessoa que lhe dê da minha parte um bom pontapé no cu.”

Muito significativamente, em jeito de remate desta sua desconcertante apreciação inicial de uma manifestação poética tão fulgurante como era aquela ode, Almada Negreiros acrescenta, num juízo de valor definitivo, formulado cinquenta anos após a publicação da revista Orpheu: “Tinha passado com distinção o engenheiro Álvaro de Campos.”

Outras vezes, o tom é também de grande e genuíno entusiasmo, mas sem recurso a remoques irónicos. Assim aconteceu com Mário de Sá Carneiro aquando da recepção, em Paris, de uma cópia da mesma ode.

Efectivamente, numa carta enviada a Fernando Pessoa a 20 de Junho de 1914, Sá Carneiro deixa extravasar a sua admiração pelo cariz marcadamente futurista daquele poema, verbalizando-a neste tom encomiástico: “você acabou de escrever a obra-prima do Futurismo.”

Em contraponto, após a publicação do primeiro número de Orpheu, no mês de Março de 1915, um dos textos que mais suscitou a sanha da elite literata republicana foi justamente a Ode Triunfal, levando alguns críticos da literatura oficial vigente a apelidar os autores desta revista de «poetas paranóicos.»

Significativamente, Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro congratularam-se pelo contributo que tinham dado para agitar a acomodada intelectualidade republicana portuguesa através do carácter inusitado, provocatório e, por vezes, escandaloso dos textos poéticos que publicaram na revista Orpheu.

No respeitante à admiração de Mário de Sá Carneiro pela Ode Triunfal, considerando-a essencialmente uma glorificação do Futurismo e dos seus valores, Fernando Pessoa relativiza essa alegada importância primordial da componente futurista presente neste poema, preferindo salientar o Sensacionismo como o traço dominante do referido poema; sem esquecer de explicitar que algumas facetas desta composição poética (tal como, aliás, o próprio Mário de Sá Carneiro tinha reconhecido) entravam em clara contradição com as teses futuristas, como é o caso da integração do passado no presente, impensável para a mentalidade ferozmente iconoclasta dos futuristas mais ortodoxos e radicais.

Numa primeira síntese, poderíamos então dizer que algumas facetas essenciais do Sensacionismo e do Futurismo constituem coordenadas importantes para a compreensão da Ode Triunfal e, por isso mesmo, vamos orientar a nossa análise à luz destes pressupostos.



Assim sendo, convém salientar que o título – Ode Triunfal – nos anuncia emblematicamente o propósito deste poema: um canto de exaltação épica da Máquina e, sobretudo, da moderna Civilização Industrial, a qual se eleva à condição de um ponto de referência Absoluto e, por conseguinte, constitui: “Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus.”; fazendo interagir o dinamismo frenético do Futurismo e uma torrente impetuosa de sensações provenientes do seu universo laboral.

Deste modo, logo a partir da primeira estrofe encontramos um sujeito poético, que sendo engenheiro e mecânico e naval, anda pelo interior de uma fábrica em plena laboração; o qual nos dá conta do impacto, no seu ser, das múltiplas e muito intensas impressões sensoriais proporcionadas pela febril actividade fabril.





À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.



Tal como eu já tinha referido e também através do que nos é transmitido por estes primeiros versos, verifica-se que a intensidade da luz eléctrica daquele espaço industrial, representativo da realidade existente nos países mais desenvolvidos do início do século XX, é tão agressiva que se torna dolorosa.

Ora este encontro imediato com o admirável mundo novo dos progressos tecnológicos e da produtividade industrial, verdadeiramente frenéticos, vertiginosos e violentos mergulham-nos não só num imenso turbilhão sensacionista, mas também configura um novo tipo de beleza “totalmente desconhecida dos antigos”; os quais durante muitos séculos se orientaram pelo paradigma da estética aristotélica, ignorando a existência da beleza futurista: proveniente da esfusiante fonte de energia da civilização industrial e decorrente, também, da nossa capacidade de saber interiorizar o encanto estético deste manancial de impressões sensoriais.

Por tudo isso, o sujeito poético, assumindo-se como o engenheiro cosmopolita, deixa que as impressões visuais tão fulgurantes o perpassem, o impregnem e se apossem de todo o seu ser e ele fique, enfim, em estado de transe e comece a escrever: “Tenho febre e escrevo.”

Na realidade, este estado emocional de grande agitação interior que o induz a escrever “rangendo os dentes” traz à superfície o que há de mais selvagem e primordial, criando assim as condições propícias à revelação da beleza futurista, firmada na vertiginosa energia dos motores e das máquinas das grandes fábricas, gerando em catadupas um sensacionismo orgíaco.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Agora sim, o ruído das máquinas e dos maquinismos em movimento chegam até nós: “em fúria.”

As invocações e a animização das “rodas” e das “engrenagens”; a nominalização do fonema [r] repetido sete vezes, remetendo de imediato para um ciclo de perfeição que, em vez de se encerrar, ganha com a utilização do adjectivo “eterno” uma noção de perenidade e de plenitude absolutas; tudo, enfim, no seu conjunto, assume proporções de um dramatismo épico tremendamente avassalador.

Importa ainda assinalar que toda esta celebração futurista e sensacionista da Civilização Industrial é veiculada pelo sujeito poético enquanto espectador privilegiado da referida “fúria” das “máquinas,” as quais ele também animiza e invoca como que para mostrar o seu anseio profundo de se identificar com elas.

Efectivamente, o «eu» lírico assume-se como o receptor dessa mesma “fúria” que o trespassa, “por todos os seus nervos dissecados fora,” evidenciando assim a extrema violência dos estímulos sensoriais que o universo fabril lhe faculta e o faz mergulhar numa exaltação delirante, cujos efeitos colaterais são tão penosos – “Tenho os lábios secos” e “arde-me a cabeça” confessa ele – mas que o não demovem “de vos querer cantar com um excesso / de expressão de todas as minhas sensações” em sintonia com esta insofismável ânsia de “vos querer cantar com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas.”

Mais uma vez Futurismo e Sensacionismo parecem andar de mãos entrelaçadas: a par da tónica futurista da dissolução do «eu» na eufórica vertigem de exaltar e construir o futuro freneticamente e deste modo libertar uma energia sensorial capaz de deflagrar as potencialidades da beleza futurista em todo o seu esplendor, aproximamo-nos também da aspiração, inspirada por Walt Whitman, de buscar todas as potencialidades proporcionadas pelas sensações que vão perpassando o nosso corpo e a nossa alma e nos permitem: “Sentir tudo de todas as maneiras.”



Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical --

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força --

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

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