segunda-feira, 9 de março de 2009

Ainda sobre MATRIX...

Na SEMANA DA ESCOLA o Grupo de Filosofia fará uma apresentação sobre a trilogia MATRIX dos irmãos Wachowski. O que se pretende é uma abordagem de temas filosóficos que possam estar presentes no filme a partir de várias dimensões: ética, religiosa (cristã, budista e gnóstica) metafísica/epistemológica, política e mitológica.]

A GRANDE ENCENAÇÃO OU A GRANDE REVELAÇÃO?

José Caselas

A trilogia Matrix representa um interesse filosófico relevante capaz de estabelecer uma ponte entre professores e alunos no que respeita ao tratamento de temas filosóficos. A bibliografia disponível na Net são os vários ensaios filosóficos em
http://whatisthematrix.warnerbros.com/rl_cmp/phi.html e que se intitulam genericamente Philosophy & The Matrix.
Aqui encontram-se análises bem curiosas e rigorosas sobre as abordagens ao filme. Como bibliografia de apoio podemos ainda sugerir: Yeffeth, Glenn (org), Taking the Red Pill: Science, Philosophy and the Religion in the Matrix, Benbella Books, 2003; Matrix, machine philosophique, Ellipses, 2007; William, Irwin, The Matrix and Philosophy: Welcome to the Desert of the Real, Open Court, 2002; Lawrence, Mait, Like a Splinter in Your Mind: The Philosophy Behind the Matrix Trilogy, Blackwell Publishing, 2004. Sobre o filme foi organizado na Alemanha um Simpósio que contou com a presença de filósofos, realizadores, dramaturgos e outros disponível em
http://on1.zkm.de/netcondition/navigation/symposia/default
onde se pode destacar o texto de Salvoj Zizek, «The matrix or The two Sides of Perversion».
Como diz Colin McGinn (The Matrix of Dreams), em Philosophy & The Matrix (P&M), as máquinas são um modelo de administração carinhosa de gado (models of caring livestock husbandry), uma vez que criaram um mundo de sonho e sem muita dor para os humanos poderem fornecer-lhes energia. Esta alucinação consciente ou sonho acordado mantém os humanos no seu útero pré-natal onde vivem um mundo simulado.
O personagem Cypher, o traidor do grupo, qual Judas, prefere o mundo de sonho, o prazer artificial da ignorância abençoada; para ele a verdade pouco vale se não vier acompanhada da felicidade. Aqui podemos perguntar o que é melhor: o conhecimento ou a felicidade.
O mundo da Matrix não é cartesiano, uma vez que Descartes se lança na dúvida com a certeza engatilhada – o seu abalo é apenas aparente. A sombra tutelar de Deus permanece como pano de fundo oculto das suas hesitações, daí que ele salte rapidamente da dúvida para a certeza com a alegria de um neófito empossado no clube das intuições seguras. Apesar de tudo, a hipótese cartesiana do animal-máquina deu origem a um animado debate no séc. XVIII entre materialistas, empiristas, cépticos, etc que oscilavam entre a materialidade do corpo e a espiritualidade da alma, com nomes como La Mettrie com a obra L’homme-Machine (1748), Boullier, Essai philosophique sur l’âme des bêtes (1728) e Condillac com o seu Traité des animaux (1755). A Matrix é um espectro do mundo totalitário, um mundo vigiado; nesse caso o filme realiza o sonho de abafar continuamente os insolentes, os que pretendem uma liberdade absoluta, como advoga Michael McKenna em «Neo’s Freedom… Whoa!» Se a matrix é um sistema de controle, como diz Morpheus logo no início, Neo é o insubmisso, o que não aceita a servidão, o rebelde que assume as suas escolhas, a sua vontade livre. O que é uma vontade livre? No interior da matrix os seres humanos estão sujeitos a uma vigilância constante por parte de programas (Agent Smith) que escrutinam a irreverência e repõem as falhas (ver «Recorde mundial» e «Além» do Animatrix), e no exterior – no mundo devastado – são as sentinelas que se encarregam disso, máquinas que se movem rapidamente com múltiplos olhos. A matrix não existe sem um sistema de vigilância e sem um modo de constituição de subjectividade, visto que não é permitido nem sequer uma rebeldia simulada. Por que motivo não conceder a ilusão de uma liberdade absoluta no interior do software, na fábrica de ilusões? Se a cidade das máquinas programa uma simulação, esta ainda assim se aproxima da coerção clássica onde reina o medo, a incitação à obediência e à docilidade. O corpo real confinado nesse ventre, nessa matrix, no útero que serve de meta-realidade para produzir energia divaga no mundo dos sonhos quase da mesma forma que na sua clausura, isto é, preso da norma e do limite. Apenas Neo quebra essa norma, Morpheus também é um rebelde à sua maneira no sistema de Zion. Neo, o rebelde, chega mesmo ao ponto de controlar o seu sonho, a realidade induzida pelas máquinas. Trata-se do que Colin McGinn designa como os sonhadores lúcidos e, neste caso, Neo é um deles, capaz de dirigir a sua imaginação e assumir as suas escolhas, apesar das máquinas soberanas. Se cada um está no seu casulo como é que existe a interacção? Como lidamos com as outras pessoas? Somos nós que participamos no seu sonho ou eles que entram no nosso? A questão da intersubjectividade ou sonho colectivo articula-se com o nosso conhecimento do mundo. Se pressupomos que o nosso mundo é real para nós, como sabemos que as outras consciências o vêem da mesma forma? Como diz Iakdvos Vasilou (Reality, what matters, and the Matrix), as pessoas encontram-se entre a escravidão e o engano – Deus é um programa de computador.
Neo não acredita no destino; ele prefere a liberdade de escolha lutando contra os programas sencientes. Mas terá uma liberdade absoluta? Aparentemente ele vence a própria causalidade do mundo programado, conseguindo deter as balas e voando, proezas que não estão acessíveis aos demais sonhadores.
Há quem prefira antecipar o mundo pós-apocalíptico. Kevin Warwick (The Matrix – Our Future?) em P&M, implantou uma espécie de bio-portas no seu sistema nervoso ligando-se ao computador de modo a alterar a sua individualidade. Ele conseguia abrir portas e acender as luzes num quarto, tendo todos os movimentos do corpo monitorizados. Afirma que se sentia feliz com esse Big Brother vigiando o seu comportamento. Muitos autores afirmam que a inteligência artificial e o aparecimento de robots sencientes é inevitável e que é grande a probabilidade de estarmos num universo simulado (Ver o argumento da simulação de Nick Bostrom em www.simulation-argument.com). Será que a sua moralidade é a mesma do que a dos humanos ou será drasticamente diferente? Escreve T. Bénatouil: «Todavia, de um ponto de vista estritamente político (e não moral ou teológico), pouco importa que as máquinas exercem ou não o seu poder de modificar ou de destruir a história humana na Matriz. A injustiça reside apenas no facto de a humanidade estar sob o controle de uma outra potência que ela própria.» [“Sommes-nous dans la Matrice?” in Matrix, machine philosophique, p. 118]
A liberdade pura de Neo contrasta com a razão providencialista de Morpheus, crente no futuro do mundo devastado, o deserto do real, encurralado pela ilusão. A liberdade pode coexistir com a técnica? O encontro de Neo com o Conselheiro Hamann tem como objectivo pensar a relação de co-dependência entre as máquinas e o homem. Como se iniciou a guerra homem-máquina? Talvez a incapacidade de o homem perceber que as máquinas não são apenas instrumentos.
Portanto, em Matrix, a grande revelação coincide com a grande simulação: o que é revelado é que nos encontramos num universo encenado (de cartão colorido por bits) e que estamos sujeitos a um controle total, uma dominação absoluta, por parte de uma instância maquínica, seja ela a velha metáfora orwelliana do Big Brother ou a imagem distorcida do capitalismo impiedoso. O que importa é então a rebeldia como modo de ser ético e não a figura de um Messias salvador. No fim da trilogia percebe-se perfeitamente que Zion continuará sendo um reduto desvanecido de um mundo destroçado. Neo não liberta os milhões de seres humanos da sua condição de existentes quiméricos. A desertificação do real tem que coexistir com a tecno-cultura e, pior ainda, está submetida a esta entidade não humana, um sistema de controle irreversível. A única bênção de que dispomos é a ignorância voluntária de Cypher, uma espécie de felicidade artificial (paraísos artificiais?) forjada no engano. Assim sendo, Matrix não difere dos universos paralelos que o consumo de drogas duras produz num autêntico castelo de cartas que estilhaça o corpo e a mente.
O interessante ensaio de T. J. Mawson (Morpheus and Berkeley on Reality) em P&M, coloca a grande questão de toda a filosofia do conhecimento: Como é que sabemos se as nossas ideias se assemelham às coisas que pensamos? Estando ou não na matrix tudo parece uma «incontornável ilusão»; imaginar a realidade sem saber se é verdadeira ou não. Podemos comparar as nossas ideias com as das outras pessoas? É possível sair por momentos do ponto de vista humano? E se o mundo de Zion e da Nebuchadnezzar é uma matrix de outro nível como nos jogos de computador? Provavelmente estaríamos dentro de uma realidade virtual dentro de uma realidade virtual dentro de… e assim por diante. E em que realidade está o Arquitecto? Se optarmos pela solução platónica, apenas as ideias são reais. Mas a ideia que Morpheus faz do cockpit da sua nave não será a mesma do que das ruas da matrix?
Para Rousseau, aqueles que pretenderem separar a política da moralidade nunca entenderão nenhuma das duas. Serão as máquinas com inteligência artificial um dia capazes de assumir atitudes políticas? E o que significa isto? Ser político, como já dizia Aristóteles, implica utilizar o discurso para exprimir o útil e o prejudicial, o justo e o injusto. Para ele, é necessário possuir o sentimento do bem e do mal e sobretudo viver em cidade. Mas essa questão já matrix parece ter resolvido ao erigir uma cidade das máquinas falantes e conscientes. Julia Driver no seu ensaio «Artificial Ethics» (P&M) considera que a moralidade das ciber-pessoas no filme é equivalente à humana visto que o programa possui consciência. Eles não são como os loucos porque agem com uma intenção e com uma escolha voluntária. Mas se assim fosse quem puniria os danos virtuais do Agente Smith? Não estaria(m) ele(s) acima da justiça? O Arquitecto no segundo episódio da trilogia “obriga” Neo a escolher entre duas portas, mas quem constrange as máquinas? A impunidade das máquinas representaria o absoluto constrangimento dos humanos, visto que estes se encontram sob o seu jugo. Nesse caso, o universo de Matrix, esse mundo de sonho/pesadelo aproxima-se do universo totalitário, onde vigora de forma permanente o estado de excepção e onde a morte do Outro fica sempre impune. Nesse caso, todos os humanos se transformam em vida nua à mercê dos danos que as máquinas entendessem infligir, sem qualquer propósito racional – um mundo de pura instrumentalidade, visto que o homem está reduzido à utilidade de produtor de energia. O seu bios, o seu corpo, é apenas um mero instrumento ao serviço da cidade das máquinas. Universo biopolítico portanto esta visão que resulta de Matrix onde não existe realmente vontade livre e tudo se encontra determinado. Quem se rebela é perseguido e «morto» virtualmente. Ora essa morte virtual implica a morte real do corpo inserido no casulo. Não há, assim, imortalidade em Matrix, logo toda a religião é impossível – não passa de mais uma simulação. O universo fechado de Matrix não tem saída. É o nosso futuro? É isto que autoriza Zizek a fazer a comparação com o nosso mundo actual. Se é que já não estamos no interior de uma Matrix… «Esta atitude paranóica adquire um reforço posterior com a actual digitalização das nossas vidas quotidianas. Quando a nossa inteira existência (social) é progressivamente externalizada-materializada no grande Outro da rede de computador, é fácil imaginar um programa maligno apagando a nossa identidade digital e privando-nos da nossa existência social, tornando-nos não-pessoas.» (The Matrix or The Two Sides of Perversion)
De facto, que vida social pode existir nesse limbo uterino?

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